Vou começar a divulgar neste blog alguns quadrinhos realizados por autores e autoras da Alemanha, da Suíça e da Áustria, ou seja, quadrinhos em alemão. Sem periodicidade nenhuma, apenas conforme for me apetecendo.
Quero começar com uma graphic novel que li esta semana e ainda está reverberando na minha cabeça: »Emil:ia«, de Peer Jongeling.
O título é escrito assim, com dois pontos, porque o protagonista da história não tem certeza se é Emil ou Emilia, ou seja, se se identifica como homem ou como mulher. Quer dizer, no início ele até possui certa convicção de se sentir um homem habitando um corpo feminino, o que acarreta sentimentos muito fortes de disforia de gênero: Emil quer deixar de ser Emilia e para isso está disposto a passar pelo processo de redesignação de gênero. Aos poucos, porém, surge a dúvida se o ódio ao próprio corpo não é resultado de ideias sociais pré-concebidas – e internalizadas pela personagem – sobre o que significa ser mulher.
É um quadrinho relativamente curto, de 164 páginas, que consegue tratar com muita coragem um tema que geralmente só é debatido a partir de achismos ou bandeiras políticas: o processo de transição de gênero (e, especialmente, o de destransição).
Chamam a atenção os personagens fofinhos, desenhados como animais antropomorfizados, provocando assim uma certa sensação de ingenuidade. E é dessa forma que a obra consegue ir tão fundo no tema, simplificando no aspecto formal um assunto complexo e fazendo uso de uma história muito particular para tratar de um debate mais amplo.
Na cena abaixo, Email beija pela primeira vez sua colega de apartamento, uma mulher cis e hétero chamada Lisa, que logo após o beijo declara, de maneira impensada, nunca haver beijado uma mulher. Como reação ao que acabou de ouvir, Emil – que nesse momento se encontra prestes a realizar a cirurgia de mastectomia e, portanto, ainda apresenta características físicas femininas, mas se identifica como homem – solta a mão de Lisa.
Essa história em quadrinhos também toca em questões de transfobia, e o faz de uma maneira pouco maniqueísta: às vezes é Lisa quem ingenuamente age de maneira transfóbica, em outras vezes o próprio Emil é acusado por Ari, amigue não-binárie, de ser transfóbico; e até mesmo Ari recebe críticas de Emil por desrespeitar seus questionamentos sobre o próprio corpo.
»Emil:ia« foi publicado ano passado pela editora Jaja, de Berlim. A autora Peer Jongeling retrata aí através da ficção uma história muito pessoal: nascida em um corpo feminino, Jongeling passou pelo processo de transição, tornando-se um homem trans; algum tempo depois, repensou a decisão e voltou a se identificar como mulher.
Tudo isso é contado em detalhes neste documentário de meia hora, feito pelo canal alemão ZDF (cutuque na imagem para acessar o vídeo):
O documentário é em alemão, mas resumindo: a autora – que ali é chamada de Nele – passou por todo o processo de transição de gênero e, mais tarde, de destransição de gênero, sempre com acompanhamento psicológico e endocrinológico. Então ela sabe do que está falando.
Mas a questão é polêmica, e Nele/Peer tem se esforçado por divulgar informações sobre o processo. É dela, por exemplo, essa cartilha sobre destransição, na qual ela conta histórias reais de pessoas que passaram pela redesignação sexual e se arrependeram:
(Outras informações no site da autora.)
Em suma, »Emil:ia« é uma obra que desafia lugares-comuns sobre o tema e nos possibilita pensar no quanto o processo de construção de identidade é único. E que a discussão pode ficar um tanto menos complexa se o foco for colocado na história pessoal de cada indivíduo que toma decisões sobre o próprio corpo.