Eu não gosto de damasco. Da fruta. E pensando agora, talvez isso tenha me afugentado do livro homônimo que o roteirista Lielson Zeni fez com o desenhista Alexandre S. Lourenço. Eu soube da existência dessa obra logo após o lançamento, e apesar do Lielson ser um camarada, não fui atrás dela. Li algumas coisas sobre o enredo e sabia que não tinha a ver com a fruta, que o Damasco do título é a capital da Síria. Mesmo assim: essa minha ojeriza à fruta damasco é visceral, e não bastasse o título, ainda a obra é toda feita em três cores: branco, preto e, claro, um amarelo da cor do damasco. Sacanagem.
Mas aí em novembro dei um pulo em Santa Maria/RS, encontrei o Lielson e fizemos um troca-troca de livros de própria autoria lançados em 2023. Eu dei a ele meu “Pequeno Manual da Reportagem em Quadrinhos”, e ele me deu “Damasco”, customizando o exemplar com uma dedicatória personalíssima.
Lielson faz nessa dedicatória uma referência à reportagem por saber que sou jornalista e acima de tudo um entusiasta de tudo que tem a ver com não ficção, como o jornalismo em quadrinhos. Ele reforça isso em um segundo desenho ao fim do livro.
Mesmo lisonjeado com a dedicatória, demorou até eu criar coragem para encarar meu asco por damasco. Mas agora, em janeiro, eu consegui. E fico feliz por tê-lo feito, porque é uma obra deslumbrante. Não só em termos gráficos – a editora Brasa caprichou na edição –, mas também pela narrativa em si. Ela reverberou tanto que me deu vontade de escrever este texto.
Resumidamente, “Damasco” é uma graphic novel de quase 200 páginas contando a história de um sujeito chamado Saulo que fica fascinado com a ideia de desaparecer assim do nada. Sobre o enredo, não preciso dizer muito mais, no site da editora tem informações suficientes. Também o posfácio do jornalista Eduardo Nasi é altamente recomendável, pois ajuda a elucidar subtextos, especialmente aqueles relacionados às narrativas bíblicas. Porque, claro, não é à toa que o personagem principal se chama Saulo e o livro se chama Damasco. Tem a ver com a história de Paulo, também conhecido como São Paulo, aquele da Bíblia. Eu sou pouco versado em temas bíblicos, mas quem entende minimamente pega as referências desde o início. E quem não entende vai admirar ainda mais o livro ao ler o posfácio.
De qualquer forma, pra mim, o que pegou mesmo foi a narrativa visual.
“Damasco” não é aquele tipo de quadrinho em que você dá uma olhada superficial nas imagens e faz a leitura do texto nos balões e recordatórios e já tá bom. Não, aqui é importante LER AS IMAGENS. E apesar de eu gostar muito de quadrinho de não ficção, são quadrinhos assim – de ficção, mas que usam a linguagem da HQ de maneira criativa e única – que realmente me pegam de jeito.
Os recursos são variados. Tem o uso de plantas baixas de imóveis para demarcar ações e ambientes, tem repetição de quadros e de cenas com leves variações, tem emulação de jogo de videogame, tem receita de molho bechamel, tem labirintos de revistas de passatempo, e por aí vai. Às vezes, só tem uma palavra ou um desenho na página.
Uma sequência especialmente bem realizada coloca lado a lado um dia na vida de dois personagens, apresentando em paralelo os acontecimentos simultâneos, porém diferentes, que vivenciam. É um recurso que ao mesmo tempo aproxima e afasta esses personagens.
“Damasco” é um quadrinho sobre o marasmo da rotina, cuja leitura não é nada tediosa. A variação no uso de recursos narrativos faz com que você permaneça sempre em estado de alerta, sempre ligado para o que vai ser mostrado a seguir e como isso se encaixa com o que foi visto antes. É necessário olhar atentamente para o que está representado em cada página, avaliar bem cada mensagem sugerida, ponderar sobre os possíveis significados, conectar com algo que havia sido mostrado antes… Em suma: um quadrinho que utiliza as possibilidades da linguagem dos quadrinhos até o seu limite.
Autor e desenhista sabem muito bem o que estão fazendo, e suas referências artísticas estão espalhadas por todas as páginas. Um personagem que aparece repetidamente em uma cena banal na cozinha do escritório lembra o protagonista de “Asterios Polyp” de David Mazzucchelli, um clássico do uso inventivo da linguagem dos quadrinhos (que inclusive eu adoro usar em palestras e cursos sobre HQ, como forma de mostrar para leigos tudo que essa arte é capaz).
Os pezinhos fininhos e delicados das personagens me deixaram com a sensação de já ter visto isso antes. Sim, em “Dragman”, de Steven Appleby, embora lá seja para demarcar o uso de salto alto. Talvez a referência em “Damasco” venha de outra obra, mas certamente é uma referência.
Saio desse livro sem de fato ter saído dele. “Damasco” certamente vai seguir nos meus pensamentos por muito tempo.
E o mais incrível é que esses elogios que trago aqui são apenas aquilo que eu consegui ver. Depois de ler o posfácio do Eduardo Nasi, me dei conta de tanta coisa que não vi, mas que ele viu. E sei que percebi muitas coisas que não aparecem no posfácio. Aliás, o livro tem ainda um segundo posfácio, dessa vez escrito pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares, apresentando de maneira ainda mais instigante uma leitura psicanalítica de “Damasco”. Daí que fico imaginando o que a soma de leituras pode acrescentar à trajetória deste livro.
Que merece muito ser lido. Mesmo que você não goste de damasco.